
E não há dias de folga. Todos os dias temos de monitorizar a
variação de sintomas já existentes, aparecimento de novos, encontrar padrões e
possíveis justificações. Um verdadeiro scan ao corpo inteiro. É cansativo,
absorvente, enclausurante, obsessivo e sufocante. Não fazê-lo pode provocar um
sentimento de culpa enorme. Como se não estivéssemos a fazer tudo o que está ao
nosso alcance pela nossa saúde. Como se não tivéssemos amor próprio. Ninguém o
pode fazer por nós e, para contribuirmos para a decisão clínica e por vezes por
receio de uma desvalorização das queixas ou de ouvirmos um "isso não é
psicológico?" dito das mais variadas e eufemizadas formas, temos de reunir
todos estes dados e argumentos e ser os nossos melhores advogados. Percebo o lado
do profissional de saúde que tenta despistar uma possível sobrevalorização de
sintomas nossa, por outros eventos da vida ou gestão de expectativas que nos
possam fazer ter menos tolerância à dor/desconforto/limitação e, nesse caso,
não ser propriamente uma evolução do sintoma. No entanto, há que perceber se a
pessoa que está a ser avaliada tem um nível de consciência tal capaz de
distinguir o que é uma alteração do sintoma ou da capacidade para lidar com
ele. E repito, não há dias de folga. E cada dia começa com a esperança renovada
de concluirmos no fim do mesmo que houve uma melhoria. A felicidade inerente a
isso assemelha-se à de qualquer criança a receber o brinquedo que tanto pediu.
Ganhamos força e mais esperança e aproveitamos ao máximo as funcionalidades que
o corpo nos devolveu. Até que chega o dia em que piora. E vivemos tudo de novo:
a tristeza profunda, o medo, a desesperança, a revolta, o sentirmo-nos
injustiçados.
Um pós-transplante pode ser muito isto. E não há férias,
nem folgas. Apenas da vida que foi, da vida que era, da vida que nunca quisemos
deixar.
Como já escrevi em tempos, além de tudo isto, esta hiper-vigilância, foco
no nosso corpo, estado de consciência constante e níveis de alerta
elevados deixam pouco espaço para a autenticidade e espontaneidade, e tudo isso
é psicológica e emocionalmente difícil de gerir, para não dizer esgotante. Durante
um período de cerca de seis meses depois do transplante tive uma enorme
dificuldade em me ir aproximando de uma vida mais normal com todas as
restrições de pessoa imunodeprimida e fisicamente debilitada, por não ver outra
coisa à frente que não riscos. As minhas pessoas e cães eram maioritariamente
isso para mim. Deixei de os ver como aliados, mas sim como inimigos e possíveis
portadores de infecções que me podiam transmitir e isso significar graves
consequências para mim. Por esse motivo, passei grande parte deste período
isolada no meu quarto, sem sentir o sabor de um simples abraço. Quão triste é isto?
O meu corpo gritava por todos os lados “estás doente, não és o que eras.”. Acordar
num corpo que eu não reconhecia e tão débil era o que mais me custava. Todos os
dias ao sair da cama tinha de dizer a mim própria “Isto é o máximo que vais ter
hoje, por isso ou te levantas ou te levantas.”. O que me fez sair disto foi o
novo internamento em Janeiro/Fevereiro deste ano, que me fez perceber que as
consequências do transplante podiam ser para a vida e que podia ter de aprender
a conviver com elas, tentando não lhes dar tanto palco e dar protagonismo a
outras coisas. Desconstruir todo este modo de vida tem sido uma viagem e tanto,
e depende não só da capacidade e disponibilidade mental e emocional, mas também
da evolução das condições físicas e imunidade, não estando por isso, como tudo
o resto, totalmente debaixo do nosso controlo.
Aprender a conviver com o desconforto, dor e limitações
é a única forma de termos alguma paz no meio de tudo isto, claro está, quando
isto é possível e tolerável. No fundo, aceitar, embora isso não se consiga com
um simples clique. Há quem confunda isso com baixar os braços. Para mim
trata-se apenas de ser realista e viver já hoje da melhor forma possível a vida
que nos é permitida, tentando não comprometer o processo e não esperando que as
condições perfeitas se reúnam. Acaba por ser quase um delegar parte da gestão
do nosso dia-a-dia a um terceiro que diariamente nos diz que condições nos vai
dar e com isso decidimos o que vamos fazer. Custa viver assim? Honestamente, já
não sei o que é viver de outra forma. Não me lembro. Quando penso nisto, dói, porque
eu sei que é possível uma vida com um pouco mais de estabilidade e ter essa
consciência, dói, ainda que ninguém saiba o que o futuro lhes reserva. Ao mesmo
tempo que na prática já não sinto/vivo outra realidade há muito tempo e acabo
por já não ter intrínseca uma vida diferente desta, o que ajuda a apaziguar a
dor. Por mais que sempre tivesse ambicionado chegar onde estive, a verdade é
que já lá vão quase dois anos entregue a este processo e a adaptação a uma nova
versão é inevitável e, por um lado, ainda bem.
Vi esta publicação e, apesar de me identificar com uma
série de coisas, nessa semana identifiquei-me especialmente com esta parte por
ter acordado numa manhã a pensar no quão aborrecido é ter de começar o dia a
monitorizar sintomas e intensidade dos mesmos, estando a fazê-lo há mais de um
ano e não tendo propriamente outra opção. A quem vive com doenças crónicas ou
sintomatologia prolongada, aconselho vivamente a que leiam esta publicação pois
acredito poder ajudar a não se sentirem sós e até mesmo a expressar aquilo por
que podem estar a passar ❤️
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