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📝 Sábado, 17 de Agosto de 2024




    Uma vida que se pode chamar de louca. Não o "louca" de outros tempos, mas o "louca" destes. Que gosto dá celebrar assim a vida, vivendo-a com todas e tantas ferramentas que tenho à minha disposição hoje. Não "todas" as de outros tempos, mas "todas" as destes.
    Depois de dias que, de tão preenchidos e corridos que foram, se tornaram semanas e até mesmo meses sem vir aqui ao meu querido caderno, hoje, a 17 de Agosto de 2024, não consegui terminar o dia sem expressar em palavras todas as imagens que me têm vindo à cabeça relativas a este último ano. Foi há um ano o dia em que saí, por fim, do internamento de 45 dias em que fiz o Transplante de Medula Óssea a que sempre chamei de "pior fase da minha vida", em que me encontrei despida de tudo o que me caracterizava, onde deixei de ser a que também nos dava força a nós - aqueles a quem esta maldita doença e tudo o que ela acarreta tocou: eu, a minha família, os meus amigos e os meus pares.
    Mais de um ano depois do transplante, ainda não me livrei das minhas idas semanais ao IPO, quando algumas pessoas já só são seguidas mensalmente, assim como outras poderão estar a ir com mais frequência, podendo inclusive estar internadas. Sendo realista, a periodicidade das consultas nada diz sobre as maleitas da pessoa ou o sofrimento inerente a elas. Não significa que a pessoa esteja bem, mas apenas estável, podendo na mesma estar a viver uma série de complicações ou limitações. A maior verdade e a mais difícil de aprender e aceitar é que o tempo que decorre após o transplante nada dita sobre o ponto de situação da recuperação e a recuperação de um transplante pode ser uma condição para a vida. Interiorizar isto equivale a participar numa corrida de obstáculos sem termos impulso suficiente para saltar por cima deles. Muito do que vai acontecendo ao longo de um pós-transplante é uma questão de sorte ou azar na (in)compatibilidade com o dador, mesmo sendo um dador "100%" compatível - atentem nas aspas, pois o 100% refere-se apenas aos genes incluídos no estudo de compatibilidade e não a todos os genes que nos compõem. Incluo nesta roleta russa a resposta do nosso organismo ou ausência dela aos tratamentos para a Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro - incompatibilidade ou rejeição que a nova medula exerce sobre o nosso corpo, que se pode manifestar em diversos órgãos, sendo que a própria Doença do Enxerto e os efeitos laterais dos seus tratamentos poderão ser agudos ou crónicos. Espero um dia reunir forças para contar aqui, de forma mais pormenorizada, o que pode ser um processo de Transplante de Medula Óssea à luz da minha experiência.
   Hoje agradeço o facto de ter sobrevivido (sim, um processo destes pode ser fatal), de neste momento fisicamente ter poucas limitações e de estar a conseguir recuperar algumas partes de quem eu era, podendo reflecti-las no que faço no dia-a-dia.
    Hoje, enquanto me reconstruo, vou tendo maior consciência de tudo o que fui deixando para trás ao longo destes quase dois anos. É um caminho duro este, mas, ao mesmo tempo e dito de um lugar de privilégio por todo o suporte e amor que tive e ainda tenho de todos os que me rodeiam, bonito.
    Hoje celebro a vida gozando as capacidades que ela decide dar-me a cada dia. Não há dia em que suba escadas sem me lembrar do quanto isso me custava em tempos. Não há dia em que agache para mimar os meus cães sem me lembrar de quando deixei de me conseguir levantar. Não há dia em que eu pegue nos meus sobrinhos ao colo sem me lembrar do quanto tive de treinar para voltar a fazê-lo. Assim como para eles ainda é surpreendente, não conseguindo eles conter um "Olha a Titi, que forte!". Também os meus cães precisam de colo por vezes e, quando alguém me pergunta se preciso de ajuda, digo orgulhosamente "já consigo".
   Hoje não tenho dores fortes, tolero melhor o Sol e o calor, o meu corpo aceita comida e consigo realizar mais tarefas no dia-a-dia sem ter de fazer um rigoroso planeamento/gestão das mesmas por falta de energia e resistência física.
   Hoje ainda tento dominar a arte de planear o futuro sem grandes expectativas pois a volatilidade deste processo ainda é real e o que é num dia pode não ser no seguinte.
    Hoje voltei a ser a Joana sonhadora que define objectivos e (pode) corre(r) atrás deles.
   Hoje o que faço é ainda uma pequena fatia do que fazia. Navego entre uma ambição de voltar à minha versão do passado, no que ao nível de actividade diz respeito, e uma aceitação de que também isto faz parte da reconstrução de uma nova versão de mim.
    Hoje o meu futuro, no que toca à estrutura de vida, é ainda uma grande incógnita para mim e consigo estar em paz com isso e com tantas grandes perguntas sem resposta, algo de que não me podia vangloriar na minha outra vida e que provocava em mim alguma ansiedade.
   Há 2 anos, por esta altura, caminhava sem saber para uma espécie de buraco negro. Ambiciono nos próximos quase 2 meses até 7 de Outubro de 2024 concretizar alguns objectivos que defini, na esperança de que isso signifique e simbolize a transição para uma nova fase, com mais saúde e mais possibilidades de VIVER com tudo a que acho ter direito.
   Hoje ainda trago tatuado o meu lema “Hoje posso, amanhã não sei.”, contando com a possibilidade de esta fase boa poder terminar a qualquer momento, mas com a humilde esperança de que a vida não me traga mais lições.

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    Mais um pouco do que tem sido este pós-transplante ❤‍🩹
    E a minha irmã, perita em escolher roupa para cada ocasião, surpreendeu-me com esta t-shirt no dia em que eu saí do internamento 😍 os calções a meu pedido porque na altura a minha pele não tolerava calças 🤭
   Há uns tempos, um grupo de amigos perguntou-me genuinamente e com toda a frontalidade "Joana, mas afinal porque demora tanto tempo a recuperação de um transplante?". Agradeci imenso a pergunta porque, não sendo um assunto comummente abordado em sociedade, pode tornar-se complicado para quem está a passar por isto estabelecer ou manter contacto com as restantes pessoas. O processo é extremamente intenso, volátil, imprevisível, complexo e prolongado no tempo, obrigando a pessoa que fez transplante a quase tirar um "curso de Medicina" às três pancadas, se se quiser manter informada sobre o seu estado de saúde. Eu própria senti a necessidade de me resguardar e de me afastar de algumas pessoas por ter perdido a capacidade de as colocar ao corrente do que se ia passando. Quando me contactavam, as respostas eram vagas e sempre as mesmas, porque no fundo assim era e é o processo... As minhas métricas incluem:
- a presença ou ausência da doença de base (que no meu caso era Leucemia Mieloide Aguda)
- presença ou ausência da Doença do Enxerto Contra o Hospedeiro
- quantidade e tipologia da medicação
- sintomatologia
- capacidades do dia-a-dia
- frequência das consultas/tratamentos no IPO
     E é com base nisto que vou tentando dizer às pessoas o porquê de estar numa fase má, mais ou menos ou boa, sendo claro uma análise muito superficial.
   O regresso a uma vida dita "normal" é algo também muito esperado por todos. Mas veremos o que este puzzle de vida me reserva 🧡



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